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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

MEU BOI CAMARÃO (*)


Criança, todos sabem, aprende mais facilmente a partir do que ouve e vê. E fixa tão bem que guarda em mínimos detalhes coloridos para sempre, e não esquece nada jamais. Também eu tenho minhas histórias de recordações de infância que, do muito que vi e ouvi, guardo com gosto. A do Boi Camarão é apenas uma entre muitas que testemunhei. Até aos 12 anos de idade vivi nas terras do seu Gabriel, sogro de minha irmã Rivanda, a fazenda Sucuri , município de Ituiutaba, limitada por dois córregos e cortada por uma movimentada estrada boiadeira que passava fazendo uma curva debaixo da grande paineira, na frente da sede e que, vez ou outra servia como pouso de boiada.
Existia o rego d'agua à esquerda da casa, que era distribuído em bicas altas de arueira para abastecer a casa, mover o monjolo, o moinho de fubá e tocar o maior engenho de cana de toda a redondeza. Havia também e carro de bois, o único meio de puxar lenha, madeira, mudança, produtos da roça, coisas diversas e, nos meses de moagem, muita cana para ser moída e transformada em garapa, cachaça, açúcar e rapadura.
Cinco junta de bois (Paredão e Brasão (cabeçalho), Barreto e Barroso, Carinhoso e Lustroso, Figurão e Violão e junta da guia Salão e Camarão) puxavam o carro carregado por onde fosse necessário: dobrando espigões, subindo serras, atravessando vaus e atoleiros.
O Camarão era um boi de peso, erado, manso, de feição triste e sofrida, serena e, além do gangote calejado e merejante, trazia também os joelhos cobertos de calos que formavam um cascão grosso, preto, por vezes sangrento. Com a força de um trator possante atendia a voz de comando do carreiro ou do candieiro feito menino obediente.
Seu Gabriel, carreiro caprichoso, apenas "conversava" com os bois ou, no máximo, batia na vara de ferrão fazendo zoar o chocalho e os bichos obedeciam docilmente, e não permitia que outros careiros (seu Orozimbo, seu José Inocêncio, seu Osiris ou o próprio filho Durval, meu cunhado) sequer gritassem com os pobres animais, quanto mais instigá-los à ferroadas.



Era comum o carro engastalhar, quando carregado e em trechos de passagem difícil. Nestas situações bastava um comando mais enérgico e o Camarão (pobre Camarão) dobrava os joelhos, abaixava a cabeça submisso e, com o focinho rente ao chão, empregando toda a sua força descomunal, caminhava por alguns metros na terra dura, irregular, às vezes cheia de cascalho, pedras ou tocos de árvores. Alguma coisa acontecia ali: se não quebrasse uma canga, um canzil, uma tiradeira... o carro era desengastalhado como que puxado por ele só. Os cocões gemendo novamente e os gritos de animação do carreiro representavam - o Eia! - o brado por mais uma façanha do Camarão. Na condição de boi de guia, o Camarão era admirado, respeitado, invencível - único, na minha opinião. Encangado com qualquer outro boi famoso (O Marreco, o Cadeado, o Ramalhete ou o Sobrado) para ele era café pequeno.
É quase impossível encontrar capacidades iguais entre indivíduos de uma mesma espécie. O que se verifica é uma variação de aptidões entre dois extremos. O Camarão possuía em elevado grau os valores da força e da mansidão. Não me lembro e não sei (nem quero saber) como  aconteceu o fim do Boi Camarão. Para mim ele não morreu. Continua vivo e santificado, escondido nalgum lugar oculto, por certo no mundo da minha imaginação.
E não é sem emoção lacrimejante que revivo essa historia real do Boi Camarão.
O Boi herói, com alma de gente!

(*) - Algumas expressões são próprias do linguajar caipira da época.

Everaldo Reis Teixeira

 
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