Rádio Café Viola toca o melhor do sertanejo raíz

terça-feira, 19 de novembro de 2013

VIOLA MILAGREIRA (*)

Transcorria o ano de 1.986. Tempo em que minhas vistas a sítios e fazendas para  instalação de antenas de tv eram frequentes. Dependendo da distância e das dificuldades o serviço as vezes demorava mais de um dia.
Uma vez, no meio de uma manhã ensolarada, fui recebido pelo Sr Juvenal (que me cumprimentou com a mão esquerda por ter amputado o polegar direito) e família, conforme previamente combinado.
Porém, devido o serviço de manutenção na rede de distribuição, a energia elétrica seria religada entre o final do dia e início da noite; assim decidimos deixar meu trabalho para o dia seguinte e aproveitei para passear pelo sítio e acompanhar seus dois filhos na lida da roça - apartar as vacas, cuidar dos suínos e tal.
Até a hora do almoço deu para perceber com clareza que entre ele e a esposa não havia troca de palavras, senão por meio de recadinhos através de sua filha caçula. "Pai a mãe mandô falá qui o cumê já tá feito" "Já tamo ino" respondeu secamente.
Ao passar pela sala do meio meu olhar foi atraído por uma viola pendurada, sem cordas, em estado de visível abandono. A comida gostosa servida em panelas pretas, em cima do fogão de lenha e só ele e eu para almoçar. Indagações sobre aquela viola corroída pelo desprezo começaram a me fervilhar o espírito e meu cérebro ardia em chamas, feito graveto seco embebido em combustível de curiosidade.
Comecinho da noite. As aves já abrigadas em seus galhos. O gado acomodado no curral. O silêncio, o cheiro e a aragem levemente dispersos. Novamente só nós dois para o jantar. Achei que era o momento oportuno para puxar prosa de moda sertaneja, ensejando ouvir alguns casos. Quando, no meio da conversa, manifestei o desejo de saber algo da viola, seu Juvenal não conseguiu esconder o abalo emocional que lhe embargou a voz, fez-lhe marejar os olhos, abaixar a cabeça e respirar fundo como a buscar ânimo contra o ataque de terríveis fantasmas de amargas recordações.
Após alguns minutos de silêncio e refazimento convidou-me a conhecer o seu quintal, repleto de plantações variadas. A ramagem exuberante do arvoredo não impedia que flóculos de lua crescente caíssem sobre nós sentados num cocho, próximo a pequeno curso dágua, debaixo das sombras da noite enluarada.
Aquele homem de fala curta temperou a garganta uma, duas e mais vezes... e falou com voz entrecortada: "vou te contar a história daquela viola. Há 22 anos eu fazia dupla com único irmão. A gente cantava bonito nas festas, nos bailes, o povo gostava e aplaudia... Conseguimos até um contrato assinado e com data marcada para gravar um LP na Chantecler". Fez pausa significativa e continuou. "Porém uns dois meses antes da viagem para São Paulo uma cobra Jararacuçú me picou o dedo, deu granguena e teve de ser cortado. Fiquei sem poder tocar viola mas não deixei de sonhar. Teimei, teimei até que aprendi a tocar sem o dedão. Voltamos a cantar pra valer. Dupla novamente ensaiada, contrato renovado e nova data marcada. Tudo certo para a realização de sonhos... A voz engasgou. Mais uma pausa e prosseguiu. "Uma horrível desgraça aconteceu! Meu irmão foi assassinado à facadas. Foi o triste fim de um sonho e de uma vida!..
Após um bom intervalo e a um gesto seu, voltamos para a varanda. Ato brusco tirou a viola do prego, começou a limpá-la e mandou seu filho mais velho ir à venda comprar cordas. Aos primeiros acordes e ponteios percebi tratar-se de grande violeiro - cuja teimosia sublimou a importância do dedo. A prosa agora tomou o rumo das recordações amenas, entremeadas de pedaços de pontiados e cantarolas de modas sertanejas, noite a dentro. A lua havia sumido e os  galos amiudavam nos alertando para o adiantado da madrugada escura. Era preciso dormir.
Sua esposa Julieta, ao servir o café da manhã, fez comentários sobre o que percebeu e ouviu durante a noite e afirmou terem sido parceiros de cantorias também. De repente, sorrateiramente, ela chega por detrás dele, abraça-o e, entre emocionada e contente diz: "meu bem vamo fazê as pais? Vamo cumeçá tudo otra veis?" Uma cena forte! Emocionante!
Deixei os dois a sós e fui cuidar do meu serviço. No início da tarde, na presença de vizinhos, ao dar por terminado meu trabalho, ouvi de um dos seus filhos: "pai, canta u'as moda c'ua mãe!" Não fizeram fita e todos pudemos ouvir, no estilo Zita Carreiro e Carreirinho, belíssimas interpretações.
Foi, deveras, um milagre da viola falecida que, ressuscitada, fez renascer um casamento, uma família e muitas alegrias mortas havia mais de duas décadas. E ainda semeou canteiros de novas esperanças em pelo menos 5 corações! Um dos filhos, comovido (o mesmo que pediu que cantassem), me confidenciou jamais ter visto seus pais conversando. Quanto ao motivo que levou o casal à  tão prolongada desavença, nada fiquei sabendo.

(*) - Os nome próprios são outros. Algumas expressões são particulares.

Everaldo Reis Teixeira
saladevioleiros.blogspot.com